PROBLEMAS BIOÉTICOS DO TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO INVOLUNTÁRIO
MARIA HELENA DINIZ- Titular de Direito Civil da PUCSP
Seria ético e juridicamente admissível o tratamento psiquiátrico involuntário, isto é, sem o consenso do paciente, ou melhor, contrariamente à sua vontade? Em que casos se poderia admitir tratamento de pessoa portadora de transtorno mental em oposição à sua vontade?
A internação dessa pessoa só poderá dar-se quando recursos exta-hospitalares forem insuficientes e terá por escopo a sua reinserção social (Lei n. 10.216/2001, art. 4º e § 1º).
Há uma tendência em se aceitar tratamento psiquiátrico à revelia do doente mental, ante sua periculosidade, incurabilidade, imprevisibilidade, capacidade de praticar atos violentos, em asilos, (Lei n. 10.216/2001, art. 4º, § 3º), hospitais especializados ou manicômios, pois a falta de cuidado médico contribuiria para a cronificação do paciente, que mergulharia cada vez mais em seu mundo autista, reduzindo sua possibilidade de reintegração social e familiar e recuperação.
O tratamento psiquiátrico involuntário (Lei n. 10.216/2001, art. 4º, § 6º, II) deve contornar crises de agitação do paciente, sem fazer com que viva em clima insuportável de ociosidade e negligência assistencial. Nesse isolamento e confinamento forçados, deve-se:
a) evitar a perda da autonomia da vontade, de forma a que não se desenvolva um afrouxamento no comportamento social, fazendo-se com que o paciente não perca, por exemplo, o hábito de asseio e procure comunicar-se com os outros. Logo o tratamento em regime de internação será estruturado de maneira que ofereça assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicólogos, ocupacionais, de lazer, e outros (Lei n. 10.216/2001, art. 4º, §2º);
b) deixar de usar a repressão física ou a “camisa de força química” para ocultar a escassez quantitativa ou qualitativa de pessoal dessa área de saúde e mascarar a falta de atenção ao paciente.
Com base na teoria do parens patriae, o Estado (Lei n. 10.216/2001, art. 3º), como substituto dos pais do paciente, deve autorizar sua hospitalização compulsória (Lei 10.216/2001, arts. 6º, III,e 9º) sempre que representar perigo para si mesmo, por ter tendência suicida, ou para outrem, se apresentar pendores para o homicídio ou para perturbar a ordem pública, ou se não tiver capacidade para cuidar de si mesmo de modo adequado. A decisão médica (Lei 2016/2001, art. 8º) de internar o doente mental, diante da insuficiência dos recursos extra- hospitalares (art. 4º da Lei n. 2016/2001), apesar de ter por escopo a sua reinserção social (art. 4º, §1º), deve ser avaliada e revista por junta interdisciplinar designada pelo Ministério Público (Lei n. 10.216/2001, art. 8º, §1º), devendo, além disso, o caso ser analisado, periodicamente, por um conselho composto de psiquiatras, médicos, psicólogos e advogados, que não possuam quaisquer vínculos com a instituição hospitalar onde está internado. Esse controle externo é imprescindível, no nosso entender, porque o paciente está internado contra sua vontade, havendo restrição à sua liberdade interior e exterior. Cada membro desse conselho deverá fazer um juízo avaliativo da situação do paciente, no seu respectivo campo de atuação. Isto é assim porque, se o doente, em razão de sua moléstia, não pode tomar decisões válidas nem dar seu consentimento informado ou esclarecido, por não possuir discernimento nem exercer seu direito à liberdade de aceitar ou recusar ações terapêuticas, deverá haver um órgão que o defenda, considerando, tecnicamente, se tais ações são ou não indesejáveis, oportunas, se houve uma melhora em seu estado ou até mesmo se sua recuperação se deu. Há, em vista disso, autores como Roth, Meisel e Lidz (1), que têm tido a preocupação de estabelecer testes suscetíveis de aferir a capacidade do doente para decidir sobre seu tratamento, avaliando sua racionalidade e compreensão das informações dadas. Appelbaum e Grisso (2), advertem que, em algumas hipóteses, existem fatores, como fadiga e o efeito de medicamentos, que podem provocar flutuações transitórias do estado mental, levando a crer que o paciente não tem competência para decidir sobre o seu destino. Abernethy, por sua vez, salienta a possibilidade de o paciente ser considerado incapaz ao recusar um tratamento, não por incompetência de decisão, mas por possuir sentimentos de hostilidade (3).
Diante de tantos problemas sérios não deveria a moderna psiquiatria usar de recursos farmacológicos neurolépticos, antidepressivos e ansiolíticos que possam conseguir resultados terapêuticos positivos?
Ciente desse insatisfatório modelo de atenção à saúde mental, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou, em 1991, os princípios para a proteção de pessoas acometidas de transtorno mental e para a melhoria da assistência à saúde mental, cujo texto foi adotado pelas Resoluções n. 1.407/94 e n. 1.598/2000 do Conselho Federal de Medicina (Brasil) e pela Lein. 10.216/2001 como guia. Tal documento salienta o direito de o doente mental ser tratado com humanidade e respeito à sua dignidade como ser humano e afirma que a terapia de cada paciente deverá estar direcionada no sentido de preservar e aumentar sua autonomia pessoal. Com isso o doente mental deve ser ouvido e tratado com respeito e dignidade. É preciso encontrar o equilíbrio entre o dever de cuidar do paciente e o direito deste à liberdade, contribuindo para seu crescimento emocional, para a superação de suas dificuldades no relacionamento interpessoal, para a ampliação da sua liberdade interior e da sua compreensão do ser no mundo. Inadmissível será o tratamento psiquiátrico que venha a oprimir o paciente, desrespeitando sua dignidade e a recuperação de sua saúde mental (4).
Bibliografia:
(1.) Roth, Meisel e Lidz, Tests of competency to consent to treatment, Am. J Psychiatry, 134:279-84; Roberto Bolonhini Junior, Portadores de necessidades especiais, São Paulo, Arx, 2004, p. 218-24.
(2.) Appelbaum e Grisso, Assessing patient’s capacities to consent to treatment, N. Engl. J. Med., 319:1635-8.
(3.) Abernethy, Compassion, control and decisions about competency, Am. J. Psychiatry, 141:53-8. A Portaria n. 469/2001 do Ministério da Saúde altera a sistemática de remuneração dos procedimentos de internação em hospital psiquiátrico e dá outra providências.
(4.) Ivan de Araújo Moura Fé, Doença mental, Bioética..., cit. P. 73-8; Kaplan, Sadock e Grebb, Compêndio de psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria social, Porto Alegre, 1997;Taborda e Busnello, Rotinas em psiquiatria, Porto Alegre, 1996, p. 280-9; Maria Helena Diniz, O estado atual do biodireito, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 225-27.