O Caso do Sapato Errado

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Fui mal atendido pelo funcionário da repartição, eu que era tratado como uma flor fui despetalado por um imbecil que vociferava palavras que não ouso repetir e por quê? Não sei, o homem deve ter dormido com um dragão, colchão de mola quebrado, mal olhado, não sei, só sei que sua investida contra minha pessoa foi totalmente desarrazoada, violenta, um abuso de poder, logo um funcionário, classe tão educada e cortês.

 

Reagi, mandei-lhe a merda com um direto de direita no queixo que o fez desabar imediatamente sobre o piso da coletoria, tudo isso apenas em pensamento porque diante da ofensa não tive reação alguma, fiquei estático diante do ofensor, sem qualquer tipo de investida, mesmo oral. Fiquei mudo e imóvel.

 

Por quê? Ora, porque os meus sapatos me impediram, ora essa. Quando de manhã, escolhi este calçado que há muito não usava, calcei-o e fui ganhar o dia como dizem alguns e nada de diferente notei, mas ao caminhar pelas ruas da cidade em direção à repartição para pegar alguns papéis e levar ao correio, comecei a sentir algum embaraço no trocar dos pés, no andar, não consigo explicar, não era nada físico, o sapato não apertava, pois que não sou como estes vaidosos que calçam 45 e compram 42, o calçado que usava era leve, tipo uma mistura de tênis e sapato, arrojado, dá para subir morros com eles dizem os aventureiros, um jeep do calçado, mas algo ia mal, o andar não deslanchava, me sentia preso ao chão, parece que a cor do tênis não combinava com a calça e esta por sua vez com a camisa, as meias dançavam, os braços já sentiam um certo desequilíbrio corporal, a mão esquerda levemente mais veloz que a direita, não sei. Não cheguei a tropeçar, mas quase, parece que até o ar me faltava, tudo por ter calçado o maldito sapato.

 

Nunca imaginara que algo deste tipo pudesse acontecer, e lá estava eu diante de meu algoz que há pouco me crucificara com palavras e gestos e eu nada fiz, nem ao menos um bocejo de desprezo, nada. Não sei quantos minutos haviam passado, senti um leve suor brotar em minha testa, o sujeito agora abria gavetas a procura de meu documento, abria e fechava com violência e um barulho quase hipnótico, abre e fecha, abre e fecha, senti uma dormência no pé esquerdo que parecia ir tomando conta de minha perna, subindo como um ataque de formigas lava-pés, quando o sujeito, não ouso mais chamá-lo de funcionário, veio ao balcão, olhou intensamente nos meus olhos, olhos que poderiam comer um boi em apenas uma refeição, notei que seu globo ocular estava vermelho a ponto de ter uma hemorragia subconjuntival e disse pausadamente, tão pausadas foram suas palavras que dava para contar as sílabas: 'não encontrei seu documento'.

 

Senti medo daquele olhar malévolo que invadia minha alma, logo eu que sempre tive orgulho de minhas façanhas na luta corporal, caçadas no meio da noite, cheguei ao absurdo de dormir em casa mal-assombrada e agora me percebo vendido diante de um ser humano desprezível que derrubaria certamente apenas com minha esquerda, já que sou destro.

 

Juntei todas minhas forças que já eram escassas, enxuguei disfarçadamente minhas mãos nas calças num movimento discreto, quase imperceptível e respondi ao carrasco:

-Vou trocar de sapatos e já volto!









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